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O que os liga? O primeiro, Cledemar, é um sujeito que serviu o exército comigo. Se o signo dos pensamentos que tive naqueles primeiros dias de treinamento para uma guerra que jamais veio e espero que jamais venha, em mim foi a ingenuidade; naquele Cledemar era sua santa loucura. Um sujeito que ergueu a mão para responder "Eu sim", em questões onde a maioria respondeu defensiva "eu não!". Sinceramente, jamais pude conhecê-lo o suficiente; ele é daquele tipo enganoso de pessoa na qual temos a nítida impressão de saber tudo de seus pensamentos, o que é sempre um engano. Achei muito estranho quando ele foi compor a equipe do rancho, onde o apelido da turma era "os pés-de-sebo". Cledemar é nitidamento o tipo de sujeito que escolheríamos em primeiro lugar para estar ao nosso lado em uma situação de conflito, tipo guerra. O sujeito que chefiava imediatamente a cozinha, depósito de víveres e operações em torno da alimentação era um cabo que parecia ter saído de um desses longas de desenho francês. Pequeno, ágil, de voz esganiçada, mas firme, honesto no que importa e bondoso sem ser tolo, exercia tal liderança e figura que jamais consegui vê-lo como subalterno dos oficiais; pois a esses impunha aquele respeito nascido da competência quase inata. Logo se afeiçoou ao Cledemar que se tornou, sem divisas oficiais, o lider do grupo de cozinha. A comida era miserável. Não posso afirmar com substância; mas creio que em uma dessas operações em que se distingue mais a aparência que o estar, as verbas iam mais para a estética do quartel e suas operações. Ao sair do exército fiquei sem comer peixe e tomar chá por mais de um quinquênio. E afirmo com absoluta certeza que isso nada se deve aos certamente parcos dotes culinários da turma do Cledemar. Essa turma, quando era arrancada, por alguma necessidade de escalas massacrantes, para marchar e fazer evoluções militares, era motivo de zuada. E, de fato, diga-se com justiça, não havia como não rir daqueles sujeitos com treinamento muito inferior ao da maioria, irem-se contra as ordens de comando: "Esquerda!", e la ía-se um Salu ou outro, meio tonto e confuso, para a direita. Mas eram sujeitos maravilhosos, em nada inferiores mentalmente; pelo contrário, como é o caso do Cledemar, alguns estavam mesmo acima da média da maioria em termos intelectivos. Apesar de que naqueles tempos eu não percebia todo o potencial do Cledemar, pois, sinceramente, se tivesse percebido, passaria mais tempo próximo de suas filosofias, brilhantes pela particularidade e humor raro. Não tenho certeza, mas algumas de suas trapalhadas, como disparar um tiro acidental céu acima em uma noite que zelava por um dos prédios, e toladas mínimas como atrasos e outros, o colocou no que chamamos "terceira baixa"; último período de dispensa onde servíamos e saíam aqueles com "alterações". Não posso imaginar Cledemar na turma polida, que saiu de primeira, cujos escolhidos eram os de "ficha limpa"; a maioria vivente apenas do empréstimo de vidas livres como a do Cledemar. Aí nos aproximamos de Remo Bertelli, e daquilo que chamamos de liberdade, esse conceito que é capaz de enganar anjos e demônios, e cuja equação, quando resolvida mudará toda ordem, da Terra aos Quasars. Após a baixa (dispensa do exército) reencontrei o Cledemar. Ele estava num bar do velho centro de Campo Grande; bar de merecida fama "cult", guardado na mente de muitos que pagariam por sua volta, impossível; dada a natureza dinâmica de uma cidade que tem valores expulsantes a tal gênero de casa. Cledemar estava cabeludo, uma cabeleira quase a "Erasmo Carlos" dos velhos tempos, mas, não tão longos, de óculos, e com a compleição mais reforçada naquilo que devo chamar de um "eterno cansaço". Repousado em seu corpanzão, com os dedos na fronte, enfrentava seu histórico rival no xadrez, um rabugento e rapinoso senhor estrangeiro, da América do Sul mesmo, ardiloso, intolerante com a própria derrota. Insuportável para muitos, por assim dizer, o velho sempre teve no paciencioso Cledemar o oponente perfeito. Cledemar é um ótimo enxadrista, que seria admirado pelo maluco e falecido Fisher, pois não é estudioso. Joga xadrez como joga a vida, com humor, respeito, liberdade, e a responsabilidade escrita por si próprio; e o principal, com uma inteligência livre e particular, visando no jogo apenas seu aspecto combativo lúdico. Luciano, um outro sujeito que merece noutra oportunidade uma descrição detalhada, intermediário entre o Cledemar e Remo Bertelli, me premiou com vários relatos sobre máximas "cledemarquicas": "a rainha é só um peãozão" (quando a perdia), no caso do xadrez. Para quem não sabe jogar xadrez, a rainha é a peça mais importante de um "exército" de tabuleiro. Cledemar é o socialista mais "ser" que eu conheço. Não percebi sujeito menos teórico neste aspecto e quando lembro de escritas de Gorki e de Montaigne, é impossível não transformá-lo em personagem. Pois sobre Gorki, é como aquele presidiário que sendo conduzido para a Sibéria, com cabeça raspada e coberto de farrapos, ao parar para uma ordem de descanso breve, percebeu um garoto numa janela a observá-los, guardas e presos sendo conduzidos para um inferno gelado nos confins russos, enorme sujeito, com vozeirão pausado, palavras bem claras, disse ao menino: "Vem! Isso aqui é que é vida!". E sob Montaigne, Cledemar atende pela clássica frase montaigniana: "O mais importante da vida, é viver". Suas risadas e tiradas quando ganhava do principal rival, ou tratava de outras vitórias, é algo natural como aqueles pães caseiros ou frutas que dão prazer sem pensarmos verdadeiramente no que são ou fazer comparações. Em filosofia Viva, somente era páreo para Remo Bertelli, frequentador histórico e destacado do antigo Iris, com sua constante depreciação crítica em várias coisas, histórias de valentia própria, brados retóricos em variadas direções, conquistas amorosas. Não me lembro de vê-los discordando em questões como Deus, cretinices polícas, hipocrisias sociais. Seguramente a poderosa personalidade dos dois os aproxima em paralelo, mas são maravilhosamente distintos, e é muito interessante recordar, nesses dias, dos dois, e agradecer aos céus que os tenha conhecido nesse lugar onde quase tudo é insonso, material, repetitivo, não criativo, artificial e conveniente, ou na melhor das hipóteses, patético. Cledemar já foi dar aulas de matemática na África, Remo foi turista com zero cents no bolso, por diversas localidades da Europa, em que conta (ao que me surpreendi) que o pior não é a fome, ou as diversas espécies de violência com que se trata os turis... aventureir... vamos ser justos a não hipocrisia bertéllica, vagabundagem por opção; o pior era não encontrar um lugar para dormir em paz. Quando ele me detalhou (como costumeiramente acontece em seu brilhante e natural estilo narrativo), sobre esse aspecto, durante muito tempo dormi muito melhor, agradecendo o conforto da cama e teto. Mas não são esses fatos que os torna titânicos, campeões disso que chamamos "vida". Pois muitos já fizeram o mesmo, o que os torna Lancelot e Galahad, é que têm um modo de brilhar que só não inveja aos tolos. Se a terra é uma comédia, uma tragédia, ou um drama, um filme, uma novela divina, o que for, seguramente somos coadjuvantes de sujeitos incríveis como esses dois que a um só tempo são preferidos dos diabos e dos deuses. Além de os ligar uma liga visível somente aos caprichos de Deus ou de deuses, nos quais eles não acreditam, e dos quais até genuína e hereticamente zombam. Liga-os algo que atende por um termo eternamente mal utilizado, o "sangue azul", que os faz carregar fardos que nós, os comuns, jamais suportaríamos; fardos, os seus próprios silêncios, histórias mais particulares que a particularidade, arbítrios e decisões aparentemente trêmulas, e tudo o que os transforma em estranhos anjos deste mundo.